sábado, 9 de julho de 2011

KAEILARAE, A PAZ

Vivemos irritados, meu amor.
Tudo nos irrita, pois tudo nos amedronta, pois nos sentimos responsáveis por tudo, logo, culpados de todo erro.
Nossa atividade permanente é encontrarmos um bode expiatório que alivie nossa culpa e nossa irritabilidade.
Não há como mudar, em si, este estado de tensão e de estresse permanente. Ele é a decorrência da nossa educação que visa a fazer de nós cidadãos responsáveis.
A complexidade da dinâmica social gera uma incomensurável pressão sobre nossas pulsões individualistas. Sentimo-nos, então, culpados quando elas surgem. Reprimimo-las, frustramo-nos, irritamo-nos, e a busca de bodes expiatórios é a última possibilidade de alívio que nos resta antes de entrarmos em processo de auto-agressão através da depressão, ou da destruição da nossa saúde física.
Toda dinâmica social complexa é regulada através de rituais de sacrifício de bodes expiatórios.
Esta prática é tão antiga quanto o homem, meu amor.
Sempre houve, nas grandes sociedades primitivas, sacrifícios de vítimas para aplacar a cólera dos deuses.
O termo
bode expiatório designa um costume judeu.
Em tempos remotos, essa comunidade costumava abandonar um bode no deserto a fim de que ele carregasse com ele os pecados da população para longe dela.
O próprio Abraão escutou Deus pedir-lhe o sacrifício do seu próprio filho, e só renunciou a esse sacrifício no último instante, quando escutou Deus pedindo-lhe para parar.
Nenhum de nós sabe realmente viver em sociedade sem recorrer ao sacrifício de bodes expiatórios para aplacar seu sentimento de culpa e a violência que ele gera, meu amor.
Basta observarmos o comportamento de motoristas no trânsito.
Ou o discurso dos políticos.
Ou o que pensam os homens
religiosos de outras religiões.
Nem sequer os grandes debates científicos escapam a essa regra absolutamente sem exceções.
Posso te parecer excessivo, meu amor, pregando esse absolutismo em um mundo relativo.
Busca, então, tu mesmo a exceção, meu amor.
Tenta encontrar um só elo da cadeia social que escapa à regra do sacrifício do bode expiatório como meio de manter sua coesão.
No seio de uma família, ensina-nos a psicologia, será sempre o membro mais sensível que carregará o sintoma do grupo, que será, inconscientemente, sacrificado para que os outros guardem uma estabilidade relativa.
Poderia discorrer ainda sobre vários outros aspectos dessa necessidade imperativa de sacrifícios rituais, mas deixo ao teu encargo encontrar a exceção, meu amor.
Caso essa dinâmica do sacrifício de bodes expiatórios te interesse, aconselho-te a buscar as obras de René Girard, um autor francês, grande especialista nesse tema.
Mas quem primeiro nos alertou para o absurdo dessa prática de bodes expiatórios como regulador social foi, precisamente, um judeu, conhecido sob o nome de Jesus Cristo.
Para que um sacrifício seja válido enquanto regulador de tensões sociais, lembra-nos René Girard, é necessário que a vítima dele seja unanimemente designada. Essa unanimidade foi obtida na condenação de Jesus.
Mas, graças à continuação da ação de Jesus através dos seus discípulos, o sacrifício perdeu sua unanimidade, logo, sua legitimidade,
e, com isso, seu valor de
cimento contentor da discórdia popular.
Como os discípulos clamavam a inocência do seu mestre, invocando a ressurreição, a função de aplacador momentâneo da culpabilidade do povo hebreu, intentada através do sacrifício de Jesus, perdeu toda a sua credibilidade,
principalmente porque, com o desaparecimento do corpo, tornou-se impossível provar realmente que Jesus não ressuscitara, como havia afirmado que o faria.
Jesus foi, assim, a primeira
vítima famosa que conseguiu demonstrar a injustiça de todo sacrifício.
Mas, embora a unanimidade do reconhecimento do sacrifício tenha sido rompida, o sacrifício em si voltou-se contra o próprio povo judeu, que passou, em seguida, a ser o bode expiatório do sacrifício de Jesus.
E como se isso não bastasse, alguns dos seus próprios seguidores alimentaram séculos depois essa
tradição, executando vítimas durante a inquisição.
Coloco aqui estes fatos, que marcaram nossa história humana bem além do ocidente, meu amor, apenas para salientar o impacto desta prática de sacrifícios rituais.
Mas não é minha intenção defender nenhum aspecto, nem atacar outras interpretações destas narrações.
Apenas saliento que, de fato, toda e qualquer acusação, seja a quem for, seja pelo motivo que for, é um sacrifício ritual de um bode expiatório, meu amor, pois, por mais que um humano seja reconhecido responsável de um erro gravíssimo, não será o seu sacrifício, a sua punição, que corrigirá o erro.
Todo erro só poderá ser corrigido se nos preocuparmos menos com quem o executou e mais com os fatores que propiciaram essa execução.
Há uma lei científica que diz:
As mesmas causas produzem sempre os mesmos efeitos.
Enquanto desviarmos toda nossa atenção aos criminosos, que são efeitos de uma dinâmica humana, não teremos energia suficiente para buscar as causas que os produzem.
Não creias que ataco aqui o critério de justiça ou que proponho que malfeitores não sejam responsabilizados e punidos pelos seus atos, meu amor.
Longe de atacar a justiça aqui, eu a defendo,
pois, nessa dinâmica social de
bodes expiatórios, a justiça e as leis são elas mesmas as primeiras vítimas! – já que esperamos da polícia, da justiça e dos homens políticos, que eles erradiquem a criminalidade erradicando os criminosos, sem um interesse maior em apreender as causas que os produzem.
Sacrificar dirigentes, porque eles não acabam com a fome e o crime, é outro ritual de sacrifício típico das democracias.
Mas, que político seria eleito propondo um programa de reflexão sobre as causas da fome e do crime?
Políticos só são eleitos se prometerem o que não podem cumprir.
Os eleitores mesmos são os que pedem para serem enganados, para poderem, em seguida, sacrificar os que eles mesmos elegeram.
Mesmas causas, mesmos efeitos...
Enquanto só nos interessarmos pelo sacrifício dos executores do
mal, nada mudará no que os produz.
Como nenhum de nós possui recursos capazes de influenciar, a curto prazo, essa dinâmica de sacrifício ritual numa escala social tão ampla, vamos, antes, contentarmo-nos de encontrar onde uma melhor compreensão desse fenômeno poderia nos ajudar na nossa vida cotidiana, meu amor.
Voltemos ao início:
Tudo nos irrita, pois tudo nos amedronta, pois nos sentimos responsáveis por tudo, logo, culpados de todo erro.
Nossa atividade permanente é encontrarmos um bode expiatório que alivie, através de um ritual de sacrifício, nossa culpa e nossa irritabilidade
.
Renunciarmos, simplesmente, ao ritual de sacrifício não é a melhor solução, meu amor,
pois, quando não descarregamos nossa violência contra os demais, ela converte-se, imediatamente, em auto-agressão:
quem renuncia a utilizar
bodes expiatórios, torna-se o próprio.
A solução desse dilema reside antes na compreensão da lei da reciprocidade, meu amor.
A
reciprocidade é uma decorrência de uma lei da física que demonstra que:
Toda ação gera uma reação igual e contrária.
No plano físico não há dúvida, meu amor.
Se duvidas, acaricia o tronco rugoso de uma árvore e sente como esta parece devolver-te tua carícia.
Em seguida, se ainda duvidas da lei, esmurra o tronco com uma certa força e sente como a agressão te é imediatamente devolvida.
A lei da reciprocidade, ou o retorno do bumerangue, é utilizada pelos chineses não somente no plano físico, mas igualmente no plano psíquico.
Mas poucos entre nós acreditam realmente que serão pagos com a mesma moeda.
A citação bíblica:
Quem com ferro fere, com ferro será ferido., parece uma afirmação errônea e infantil, de tanto que nossa humanidade parece regida pelo desrespeito fundamental dos direitos humanos e governada pela injustiça.
No entanto, meu amor, os injustos só nos parecem impunes porque desconhecemos a natureza mais profunda do bem e do mal.
Mas, o que é o mal, meu amor?
A mais unânime definição seria certamente:
tudo que nos faz sofrer.
Se levarmos em conta o ditado que diz que: Há males que vem para o bem., teremos, então, que considerar, em função da definição acima de mal, que um sofrimento só é um mal se ele conseguir manter-nos em seu poder, impossibilitando-nos de convertê-lo em um bem.
Como, então, não ser vítima permanente do sofrimento?
Como convertê-lo em um
bem-estar?
Como não ser vítima da injustiça, da agressão imerecida, da indiferença?
Como suportar que pessoas insensíveis ao sofrimento alheio cometam crimes e injustiças sem serem aparentemente incomodados?
Antes de entendermos porque a injustiça é aparentemente permitida a alguns, meu amor, necessitamos primeiro tentar entender como nos tornamos vítimas permanentes do sofrimento,
pois a lei do
bumerangue só ocorre a nível psíquico porque qualquer pessoa, normal e sã, culpabiliza ao realizar um ato que transgride seus valores humanos.
Essa culpabilidade será o motor inconsciente que acionará uma
punição destinada a aliviar a culpabilidade.
Eis como funciona a lei da reciprocidade a nível psíquico em todos nós.
A exceção a essa regra são aqueles humanos que se desumanizaram a tal ponto que não sentem mais nenhuma culpabilidade em cometer injustiças.
Logo, não buscarão inconscientemente uma punição para aliviar uma culpa que está desativada neles.
Tais humanos podem, potencialmente, cometer grandes injustiças.
No entanto:
podem eles atacar um
justo?
E o que chamo eu aqui de
justo, meu amor?
Justo é, simplesmente, aquele que, entendendo a lei da reciprocidade, sabe que é impossível prejudicar alguém, ou mesmo algo, sem ser vítima ao mesmo tempo do mesmo prejuízo.
Ser
justo, contrariamente ao que se pensa comumente, meu amor, não é uma questão de bondade.
Ser
justo é uma simples questão de inteligência.
Justos e desumanizados tem um ponto em comum, meu amor:
ambos são isentos de culpa.
Os primeiros porque não cometem injustiças, os segundos porque não culpabilizam por elas.
Justos e desumanizados nunca se encontram, meu amor, pois os desumanizados temem naturalmente os justos, bem mais do que o contrário.
Se nós todos tememos os desumanizados e seus atos bárbaros, meu amor, é porque ainda fazemos, em parte, parte deles.
É porque sabemos, no fundo de nós mesmos, que a culpa jamais nos deixará ir muito longe na senda do crime.
Por isso é que somos todos nós vítimas potenciais dos
desumanos.
Por isso tememos tanto o
mal, meu amor, pois como sabemos que podemos cometê-lo, não temos defesa contra algo que ainda faz parte de nós mesmos.
Só produziremos anticorpos eficazes para nos defender do mal, meu amor, quando nossa mente puder identificá-lo como algo ultrapassado da nossa natureza.
Nesse caso, por estarmos plenamente identificados à lei da reciprocidade, só receberemos o bem que enviarmos, e alguém que tente agir com má-intenção sobre nós receberá ele mesmo o que tentou enviar-nos.
Deus te dê em dobro tudo aquilo que me desejares. é o que está escrito nos pára-choques de alguns caminhões brasileiros.
Escrito, certamente, por pessoas que descobriram intuitivamente a lei da reciprocidade.
Agora é, então, o momento de responder:
qual é a real natureza do
bem?
O
bem é um espelho.
O
bem é o reflexo do que somos, meu amor.
Devido a isso, é, literalmente, impossível atacar o bem, pois ele, sendo o espelho neutro e inocente que recebe tudo que nele reflete, não tem como processar o mal que lhe foi enviado, não tem como identificá-lo como mal por não haver mais identificação com o mal nele, sendo toda ação negativa retornada imediatamente a quem a enviou.
Uma ação negativa só atua naqueles que a julgam negativa, meu amor, naqueles que culpabilizam pelo que fizeram antes, ou pelo que tem vontade de fazer agora, diante do mal que identificaram, logo, com o qual ainda estão identificados.
Todos os que atuam segundo a lei da reciprocidade se ocuparão apenas em reverter o que receberam em um bem.
E não há como não o conseguirem,
pois só a busca da punição, devido à culpa de sentir-se
mau, de ainda sentir-se identificado com ele, pode manter-nos num estado de sofrimento punitivo.
Assim, os desumanizados evitam os justos e buscam os culpabilizados, meu amor, pois sabem intuitivamente que o justo sempre reverterá a situação, enquanto o culpado se oferecerá como vítima, para diminuir sua culpa.
O contrário da culpa é a paz, meu amor.
Só quem entendeu a lei da reciprocidade saberá habitar a paz que reside dentro de cada um de nós e que se revela àquele que entendeu que o mal é uma simples questão de ignorância, de burrice:
Feitiço é bumerangue perseguindo a feiticeira., ensina-nos o cantor Lenine –não confundir com o famoso líder comunista, meu amor.
Se essa paz te interessa, meu amor, captura, então, KAEILARAE, ou o anjo-arquétipo da paz.
Para capturá-lo basta que medites, o quanto for necessário, sobre essa lei da reciprocidade, também conhecida como lei do carma, pelos místicos.
Começa não te inquietando mais com a aparente impunidade dos que não culpabilizam, pois enquanto isso te fascinar significa que estás com inveja deles, logo, cultivas ainda tua identificação com a ignorância, ou com o
mal.
Deixa que as respostas a estas questões mais complexas cheguem a ti mais adiante, quando já puderes não te identificar mais com a violência.
Quem sabe os budistas têm razão e os
maus contraem um carma que pagarão noutra vida.
Quem sabe tua reflexão sobre o problema te revelará ângulos de percepção até agora ocultos pela tua identificação com a cadeia da violência.
Mas de nada adianta aqui especularmos sobre crenças, meu amor.
Com o tempo, com a experiência de renunciar ao ciclo da violência, tuas próprias certezas surgirão.
No momento em que puderes renunciar ao preceito do olho por olho, dente por dente, constatarás, pela tua experiência, como as coisas ruins perdem, pouco a pouco, o poder sobre ti.
Verás como todo
malefício, todo sofrimento, converte-se, sem nenhum esforço da tua parte, em algo benéfico e proveitoso.
Tenta essa experiência, meu amor.
Nada tens a perder.
Não te proponho aqui, como sugere o Cristo, que ofereças a outra face quando te esbofeteiam.
Essa lição virá no seu tempo, quando tiveres maturidade para entendê-la.
Proponho apenas que não esbofeteies de volta, para não perpetuares o ciclo da violência sobre ti mesmo.
Nada há de
místico ou de bondade, nem mesmo de covardia nessa proposição, meu amor.
Qualquer ateu justo, movido pelo bom senso, pode entender que violência só gera violência.
Nunca nenhuma violência gerou paz, felicidade ou prosperidade na história da humanidade.
Repito: não responder ao mal com mal é uma simples questão de inteligência.
Não te proponho sequer de silenciar, de
aguentar calado,
pois há mil maneiras de se defender mais eficazmente de uma agressão do que o revide,
e sem se manter preso ao seu ciclo.
A bíblia conta que o próprio Jesus, quando esbofeteado, disse ao seu agressor:
Se digo algo errado, corrige-me, se não digo, por que me esbofeteias?
No momento em que já conseguires renunciar a agredir, meu amor, verás como surgirão espontaneamente em tua mente mil formas de se defender da agressão, e bem mais eficazes do que o revide, que te mantém prisioneiro dela.
Quando concordares com isso, tenta escutar melhor todos os pensamentos em ti que clamam por vingança, que querem fazer de ti uma vítima perpétua do ciclo da agressão, meu amor.
Observarás como se tratam de pensamentos automatizados, sem vida própria, simples mecanismos mentais que se repetem sem nenhum outro fundamento que não seja o de te manter no ciclo do sofrimento.
Constatarás como tais pensamentos funcionam como uma gravação independente de ti e da tua vontade.
Se duvidas disso, melhor ainda, meu amor,
pois para provar que minto, anota, então, tudo o que te passa pela cabeça nos momentos de dor, de tristeza, de raiva, de insegurança, de incerteza.
Constatarás, então, que os pensamentos se repetem, palavra por palavra na tua cabeça.
As mesmas frases, os mesmo argumentos desfilam como zumbis.
Verás que estes
argumentos não resistem a nenhuma análise lógica.
Poderás observar que eles se mantêm assim em ti simplesmente porque renunciastes a acionar teu espírito crítico.
Por isso, seria tão maravilhoso para ti se, por puro espírito crítico e de contradição, tu anotasses teus pensamentos nos momentos em que clamas por justiça ou por segurança.
Rebelando-te aqui contra minha afirmação, verias, então, como obedeces como um autômato às ordens interiores absolutamente desprovidas de conteúdo e de pertinência.
Mas, se concordas de antemão comigo, tenta mesmo assim não ser tão preguiçoso, e caminha por um tempo com uma folha de papel e uma caneta, meu amor.
Aproveita, então, aqueles momentos
terríveis numa fila, ou em outra situação de espera, para anotar os argumentos das reclamações que invadem teu espírito.
KAEILARAE, ou o arquétipo da paz, acompanhar-te-á nestes momentos, meu amor.
Aprenderás, pouco a pouco, a mobilizar em ti a potência que fez com que Mahatma Gandhi expulsasse da Índia a poderosa armada inglesa sem disparar um tiro sequer.
Não há nada mais poderoso do que a paz, meu amor.
Mestre Ueshiba, criador do Aikido, ilustra esse propósito com a frase:
Ninguém pode retirar minha força, porque eu não a utilizo.